Por
Patricia Ketzer
[Trecho de Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Filosofia, Área de Concentração em Filosofias Analítica e Continental, Linha de Análise da Linguagem e Justificação, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), Sob orientação do Prof.Dr.Albertinho Luiz Gallina]
Em 1978, David Annis publica pela primeira vez o seu artigo A Contextualist Theory of Epistemic Justification, no qual ele formula o que posteriormente ficou conhecido como contextualismo de padrões. Annis (2003) inicia seu artigo expondo as teorias da justificação mais aceitas até então, o fundacionalismo e o coerentismo, e apresenta o contextualismo como uma alternativa que tem sido negligenciada.
Annis (2003) parte de nossos objetivos epistêmicos mais comuns: buscar a verdade e evitar o erro, para apresentar sua teoria contextualista. Quando uma pessoa profere uma crença, há muitas objeções que podem ser levantadas contra essa, todas dentro dos objetivos epistêmicos de buscar a verdade e evitar o erro. A pessoa pode explicitar uma série de razões para justificar sua crença, entretanto, é bem possível que tenhamos, ainda, objeções a estas razões. Existem casos em que nenhuma objeção é levantada, e assim, a pessoa não precisa apresentar razões para justificar sua crença, nestes casos não significa que não haja objeções, mas que em geral, elas são dispensáveis. Annis (2003) usa o exemplo de uma pessoa que afirma estar vendo um livro marrom através da sala, casos como esse normalmente dispensam tanto razões, quanto objeções.
É sempre possível apresentar objeções com o intuito de buscar a verdade e evitar o erro, mas exigir que alguém saiba responder a todas as objeções possíveis é um requerimento alto demais para a justificação. Os avanços no conhecimento científico são exemplos disso, a ciência está em constante aperfeiçoamento, o que é conhecimento hoje pode não sê-lo amanhã, se houverem experimentos que constatem erro nas conclusões anteriores.
No momento em que se profere uma crença pode-se estar de posse das melhores razões para fazê-lo, mas se considerarmos que posteriormente tais razões podem se mostrar errôneas, teremos de admitir que existem algumas objeções logicamente possíveis que a pessoa não é capaz de responder no momento em que profere sua crença. Responder a estas objeções exige uma posição epistêmica nova, e melhor, do que a pessoa atualmente está. Segundo Annis (2003, p. 249), isso é inviável:
Serem levantadas e respondidas as objeções não deveria requerer que os participantes estejam em uma posição epistêmica nova. O que está sendo questionado é se a pessoa em sua presente posição está justificada em acreditar h. Assim, a pessoa tem apenas de responder as objeções correntes, isto é, às objeções baseadas na evidência disponível corrente.
Somente considerando o contexto no qual as crenças são proferidas podemos avaliar se elas estão ou não justificadas, pois responder às objeções requer que estejamos em uma posição epistêmica em que estas objeções sejam pertinentes. Essa posição epistêmica só pode ser avaliada ao considerar o contexto em que a pessoa se encontra. O conceito de dúvida real, proposto por Annis (2003), nos auxilia a reconhecer objeções que devem ou não serem levantadas em um determinado contexto, as objeções serão aceitas apenas se forem fruto de uma dúvida real, de inquietações que surgem em situações reais. As dúvidas se colocam quando uma crença é proferida em um contexto no qual ela não é, em geral, mencionada ou aceita naturalmente, assim, os outros membros do contexto são levados a questionar esta crença, formulando objeções.
Se quisermos exemplificar o que seria uma dúvida real, podemos pensar na seguinte situação: Camila vai a relojoaria consertar seu relógio, ela afirma ao relojoeiro: “Eu sei que meu relógio está marcando o tempo erroneamente”. O relojoeiro faz uma série de perguntas acerca desta afirmação: Que horas seu relógio está marcando agora? Você o acertou? Há quanto tempo você não troca a pilha? Mas entre estas não estão questões filosóficas acerca do conceito de tempo, são dúvidas que surgem no relojoeiro a partir da crença proferida por Camila, considerando que ele será o responsável por consertar o relógio se a crença estiver justificada.
Objeções que não fazem parte do contexto são irrelevantes e não precisam ser consideradas por aquele que crê, o conceito de dúvida real auxilia-nos a identificar que objeções necessitam ser respondidas pela pessoa que profere uma crença. As objeções oriundas de dúvidas reais nascem dentro do próprio contexto em que a crença foi proferida, elas surgem a partir de práticas reais e interferem no cotidiano, frente a que exigem uma resposta, e nestes casos a pessoa buscará a resposta, pois a objeção a mobilizará para tal.
Segundo Annis (2003) aquele que crê só precisa responder às objeções se há uma alta probabilidade destas serem formuladas no contexto em questão, no caso de baixa probabilidade está dispensado de apresentar razões. Annis (2003, p. 249) ainda destaca:
Ela deve ser uma manifestação de uma dúvida real, que seja ocasionada por uma situação real da vida. Assumindo que as probabilidades subjetivas que uma pessoa atribui refletem as atitudes epistêmicas efetivas e que essas são o produto da sua confrontação com o mundo, a questão acima pode ser expressa como segue. A S não é requerido responder a uma objeção se, em geral, seria atribuída uma baixa probabilidade das pessoas questionarem S.
O contextualismo exige um novo modo de pensar, inclusive acerca das objeções que se levantam contra uma crença, isso porque, ao levarmos em conta o contexto temos de considerar, além do fato de as objeções surgirem a partir de dúvidas reais, o fato de que somente pessoas que partilham das mesmas crenças podem levantá-las. Se a justificação se dá em decorrência de haverem crenças comumente aceitas no contexto, apenas pessoas que compartilham estas crenças podem levantar objeções.
Deste modo, levantar objeções é tarefa do grupo objetor, um grupo composto por pessoas do mesmo contexto, que levantam objeções para a crença, respeitando os objetivos epistêmicos prescritos (geralmente a buscar a verdade e evitar o erro). Os objetivos epistêmicos são comuns ao grupo, e estão em prol de descobrir se a crença proferida é justificada, trata-se de um conjunto de pessoas qualificadas para formularem objeções acerca da crença em questão. Para responder às objeções, bem como para formulá-las é preciso considerar situações reais.
Conforme Annis (2003) há várias formas daquele que profere a crença reagir às objeções que podem ser levantadas: mostrando que a objeção não é pertinente, e desta forma, fazendo com que o grupo objetor rejeite-a; aceitando a objeção, mas demonstrando que ela não afeta de forma definitiva suas razões para crer, e assim, não basta para fazê-lo abandonar sua crença. A pessoa que profere a crença pode também argumentar que a objeção não é fruto de uma dúvida real, e por isso não precisa ser respondida e pode ainda questionar o grupo objetor acerca de suas razões para levantar a objeção, e desta forma mostrar-lhes que não estão em posição de conhecer, ou que sua objeção é falsa.
Um contextualismo de padrões é uma abordagem na qual os padrões para justificação variam conforme o contexto, assim, para determinar os padrões contextuais há o que Annis (2003) denomina contexto inquisitivo. “O contexto inquisitivo é que questão específica envolvendo h está sendo levantada, ele determina o grau de compreensão e de conhecimento que S deve exibir, e determina o grupo objetor apropriado” (ANNIS, 2003, p. 250). O grupo objetor deve ser composto de pessoas mais ou menos especializadas no assunto de que trata a proposição, isto sendo definido a partir do nível de exigência do contexto inquisitivo.
Podemos notar que a concepção contextualista de Annis mantém um dever em epistemologia, o contexto inquisitivo prescreve como uma crença deve ser para ser justificada naquele contexto, certamente, não há normas que possam ser universalizadas, visto que elas são relativas ao contexto, mas ainda há uma normatividade. Annis (2003) chega a mencionar termos como valor e utilidade, termos estes comprometidos com concepções morais, concepções outras que as adotadas pelo internalismo epistemológico, mas ainda uma epistemologia que leva em conta conceitos éticos. Há um valor (ou utilidade) no contexto inquisitivo que varia conforme aceitamos as crenças quando estas são falsas e negamo-las quando são verdadeiras.
Considerando o contexto inquisitivo, o grupo objetor deve avaliar a exigência necessária para considerar a crença justificada, dependendo do contexto-inquisitivo se exige pouco ou nada para dar à crença este status, já em outros contextos-inquisitivos uma série de objeções muito fortes são levantadas. O grupo objetor deve considerar as consequências que a aceitação da crença trará. Se aceitar como verdadeira uma crença falsa trouxer consequências graves, então é preciso levantar todas as objeções pertinentes possíveis com relação à crença, mas, se ao contrário, tomar por verdadeira uma crença falsa não trouxer grandes problemas, não é necessário exigir tanto para aceitá-la como justificada.
Pensemos em um exemplo: No filme “Na natureza selvagem”, Chris McCandless assume que a batata selvagem (Hedysarum alpinum) é comestível. Enquanto Chris McCandless é estudante e realiza, por curiosidade, leituras acerca de alimentos encontrados na natureza selvagem, esta é uma crença falsa que tem pouco valor (importância), e que de fato, não interfere em sua vida, porém quando ele resolve morar no Parque Florestal, no Alasca, e precisa buscar plantas comestíveis para sobreviver, o fato de que a batata selvagem (Hedysarum alpinum) é na realidade uma planta venenosa, teve tanto valor quanto sua vida. Tomar essa crença falsa por uma crença verdadeira acarretou em sua morte. Em casos como este, em que Chris teve realmente de comer a batata, deveria ser requerido muito mais dele para ser considerado justificado em sua crença, já no caso em que ele apenas lia, por hobby, livros acerca de alimentação natural, era preciso bem menos para dar a sua crença o status de justificada. É desta forma que para Annis (2003, p. 250) que os padrões para justificação se elevam e diminuem conforme o contexto inquisitivo em questão:
O homem é um animal social e, ainda assim, quando se chega à justificação de crenças, os filósofos tendem a ignorar esse fato. Entretanto, esse é um parâmetro contextual que nenhuma teoria da justificação adequada pode ignorar. De acordo com o modelo contextualista de justificação acima esboçado, quando perguntamos sobre se alguma pessoa S está justificada em crer h, nós devemos considerar isso relativamente a algum contexto-inquisitivo específico, o qual determina o nível de compreensão e de conhecimento requerido. Isto, por sua vez, determina o grupo objetor apropriado. Para S estar justificado em crer h relativamente a um contexto inquisitivo, S deve estar apto a enfrentar todas as objeções correntes que caiam em (A) e (B) que expressem uma dúvida real do grupo objetor qualificado, onde os objetores são investigadores críticos da verdade. Assim, a informação social – as crenças, informações e teorias de outros – toma uma parte importante na justificação, pois ela, em parte, determina que objeções serão levantadas, como uma pessoa responderá a elas, e que respostas os objetores aceitarão.
O contextualismo defende a existência de crenças que são aceitas naturalmente por qualquer membro do contexto em questão, estas crenças variam em decorrência dos contextos em que são enunciadas. O contexto pode ser espaço-temporal, neste sentido ele varia de acordo com o tempo e o grupo social em que estamos inseridos, mas mais ainda o contexto difere dentro de um mesmo grupo social, uma comunidade científica, por exemplo, possui muitos contextos diferentes: a comunidade de físicos, a comunidade de matemáticos, a comunidade de psicólogos, de biólogos, entre outras, cada uma possui suas próprias crenças que são aceitas sem que para isso seja necessário solicitar justificação.
O contextualismo exige uma série de mudanças de concepção frente à epistemologia tradicional, pois se admitirmos o contextualismo como teoria epistêmica devemos levar em conta que a ele não se aplicam concepções tão corriqueiras em epistemologia, como as que trabalham com a noção de universalidade. Há de se considerar que as pessoas estão situadas no tempo e no espaço, pois é nestes que se constituem os contextos, assim, ninguém é obrigado a responder questionamentos que estejam além de seu contexto.
Se analisarmos um contexto científico, por exemplo, o que hoje é comprovado cientificamente, com o passar dos anos pode mostrar-se errôneo. Mas quem seria capaz de afirmar que a ciência não produz conhecimento? Tendo em vista as teorias tradicionais de justificação essa concepção pode parecer estranha, visto que o fundacionalismo sempre buscou uma justificação que fosse universalmente válida. Annis (2003, p. 250) salienta esta questão quando afirma:
Talvez os componentes mais negligenciados na teoria da justificação sejam as práticas sociais e as normas de justificação efetivas de uma cultura ou de uma comunidade de pessoas. Os filósofos têm olhado para princípios universais e a prioris de justificação. Entretanto, considere isso no contexto da investigação científica.
Um bom exemplo são crenças que foram tomadas como justificadas na antiguidade, e hoje já não são aceitas por nós. Segundo o contextualismo isso não significa que nunca estiveram justificadas, pois temos que analisar os dados disponíveis para a pessoa em seu contexto. Antes de Copérnico, por exemplo, ninguém ousaria dizer que a Terra não era o centro estático do universo, hoje sabemos que não é, mas naquela época era muito aceitável dizer “Eu sei que a Terra é o centro estático do universo”, e havia razões suficientes para justificar esta crença.
Para ampliar o exemplo, podemos considerar a suposição que Annis (2003) apresenta: se ao mesmo tempo em que um cientista terráqueo tem todas as evidências disponíveis para crer em uma teoria, e ela está confirmada através das melhores técnicas científicas que temos em nosso planeta, contudo um cientista mais evoluído, na Terra Gêmea, rejeita a mesma teoria. O terráqueo continua justificado em crer, visto que na Terra ainda não temos razões suficientes para rejeitá-la, neste caso, trata-se de uma mudança de contexto espacial, e não temporal, como a acima citada.
Uma mesma situação real pode ter dois ou mais contextos diferentes, este contexto possui regras que o constituem, e é a partir da variação destas que a mesma situação real pode representar contextos diferentes. O exemplo de Annis (2003, p. 253) ajuda a esclarecer estas regras de mudança de contextos:
[…] suponha que Jones está em uma festa e pergunta se seu amigo Smith está ali. Nada de muita importância depende de sua presença; ele simplesmente pergunta se ele está ali. Talvez ele quisesse conversar com Smith. Ele olha em torno e pergunta a alguns convidados. Eles não o viram por ali. Em tal situação, Jones está justificado em acreditar que Smith não está ali. Imagine, agora, que Jones é um oficial de polícia procurando por Smith, um assassino suspeito, na festa. Meramente olhar de forma casual e perguntar a alguns convidados não é, certamente, adequado.
Jones está no mesmo tempo, no mesmo espaço e no mesmo grupo social, mas o contexto não é o mesmo em ambos os casos. Se Jones é um policial em busca de um assassino as normas de conhecimento se elevam, e é exigido mais de Jones para considerar que sua crença é conhecimento do que se ele apenas está à procura de um amigo, em decorrência disto há uma mudança de contexto.
A estrutura proposta por Annis (2003) funciona da seguinte forma: para considerar que uma pessoa está de posse de uma crença justificada é preciso considerar os padrões de justificação da comunidade a que esta pessoa pertence. É preciso especificar o contexto inquisitivo em que a crença foi proferida, e definir o grupo objetor apropriado, para que este possa avaliar quais as objeções pertinentes frente aos padrões epistêmicos em voga neste contexto. O grupo objetor é oriundo do contexto em questão, e determina o nível de compreensão que é esperado da pessoa que proferiu a crença. Para ser considerada justificada a pessoa deve ser capaz de responder às objeções que surjam neste contexto inquisitivo, oriundas de situações e dúvidas reais, suas respostas às objeções devem satisfazer as práticas e normas sociais vigentes na comunidade.
Para Annis (2003) as práticas e normas sociais de cada comunidade não podem continuar a ser desconsideradas pelas Teorias da Justificação, isso significa abandonar a concepção positivista de neutralidade na ciência, pois se trata de considerar a ciência partindo de como e onde ela é desenvolvida. Annis (2003, p. 251) deixa claro que:
A ciência enquanto praticada produz crenças justificadas sobre o mundo. Assim, o estudo das práticas efetivas, as quais têm mudado através do tempo, não podem ser negligenciadas. A tendência atual em filosofia da ciência vai, assim, em direção a um realismo metodológico e histórico.
Tradicionalmente, o pensamento filosófico foi fundado na razão, e a razão foi considerada universal e objetiva. O sujeito sempre foi pensado como um sujeito universalizado, fora do tempo e do espaço, sem historicidade e sem posição social, nestas concepções o contexto, bem como as práticas e normas sociais, foram considerados irrelevantes do ponto de vista epistemológico, visto que o conhecimento era pensado como a priori e universal. O contextualismo propõe que passemos a pensar o sujeito do conhecimento como situado no tempo e no espaço e influenciado por práticas sociais vigentes nas comunidades em que está inserido.
Grimshaw e Fricker (2002, p. 597) afirmam que:
Mais do que todas as outras disciplinas, talvez a filosofia seja a que historicamente mais apreciou pensar em si mesma como fundada na razão; mas uma razão que se supôs universal e objetiva. Supôs-se o sujeito filosófico como capaz de uma “visão do olho de Deus”, uma “visão de lugar nenhum”; uma “mente racional” que não possui classe, sexo, raça, localização histórica e social, nem mesmo, talvez, em algumas teorias filosóficas, corpo. A discussão da posição social dos que praticam filosofia foi vista em termos contemporâneos (de modo bastante desdenhoso) como uma forma de sociologia do conhecimento sem relevância alguma para questões sobre a verdade ou adequação das próprias teorias filosóficas.