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[Tradução de Álvaro Nunes.A. C. Grayling, Russell, Oxford University Press, Oxford, 1996, pp. 39-44.]
Uma das questões centrais da filosofia é: o que é o conhecimento e como se obtém? John Locke e os seus sucessores na tradição empirista defenderam que o fundamento do conhecimento contingente sobre o mundo se encontra na experiência sensorial ― o uso dos cinco sentidos, ajudados quando necessário por telescópios e outros instrumentos semelhantes. Russell está de acordo com isto. Mas o empirismo enfrenta o desafio dos argumentos cépticos que visam mostrar que as nossas pretensões ao conhecimento podem com frequência ― talvez sempre ― ser injustificadas. Há várias razões para isto. Às vezes cometemos erros quando percepcionamos ou raciocinamos, às vezes sonhamos sem saber que estamos a sonhar, às vezes somos enganados devido aos efeitos da febre ou do álcool. Quando afirmamos conhecer algo, como podemos estar certos de que esta afirmação não é posta em causa de nenhum destes modos?
Em Os Problemas da Filosofia (PF) em 1912 Russell fez a sua primeira tentativa sistemática de tratar estas questões. ‘Há algum conhecimento’, pergunta, ‘que seja tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar?’ Ele responde afirmativamente, mas a certeza, como se constata, está longe da certeza absoluta da prova.
Com base em observações simples acerca da experiência perceptiva ― o facto de que, digamos, uma mesa parece ter diferentes cores, formas e texturas, dependendo de variações no observador ou nas condições em que é percepcionada ― podemos ver que há uma distinção a fazer entre as aparências das coisas e aquilo que elas são em si mesmas. Como é que podemos ter a certeza de que a aparência representa fielmente a realidade que supomos encontrar-se por detrás dela? Pode-se mesmo perguntar, como sugerem os argumentos cépticos sobre os sonhos e as ilusões, se podemos ter a certeza de que existem de facto coisas reais ‘por detrás’ das nossas experiências sensoriais.
Para lidar com estas questões, Russell introduz o termo ‘dado dos sentidos’ para designar as coisas que são imediatamente conhecidas na sensação: ocorrências particulares na consciência perceptiva de cores, sons, gostos, cheiros e texturas, correspondendo cada classe de dados a um dos cinco sentidos. Os dados dos sentidos distinguem-se dos actos de os sentir: eles são aquilo de que temos imediatamente consciência nos actos de sentir. Mas eles têm também, como as considerações do parágrafo anterior mostram, de ser distinguidos das coisas no mundo fora de nós com que os supomos associados. A questão crucial portanto é: qual a relação dos dados dos sentidos com os objectos físicos?
A resposta de Russell ao céptico que questiona o nosso direito a alegar que conhecemos o que se encontra por detrás do véu dos dados dos sentidos, ou até a pensar que os objectos físicos existem, é dizer que embora os argumentos cépticos sejam, estritamente falando, irrefutáveis, não há no entanto ‘a menor razão’ para os supor verdadeiros (PF 44[1]). A sua estratégia é coligir considerações persuasivas para suportar o seu ponto de vista. Primeiro, podemos pegar em que as nossas experiências imediatas do dado dos sentidos têm uma ‘certeza primitiva’. Quando temos experiência de dados dos sentidos que vemos naturalmente como estando associados com, digamos, uma mesa, reconhecemos que não dissemos tudo o que há a dizer sobre a mesa. Pensamos, por exemplo, que a mesa continua a existir quando não estamos na sala. Podemos comprá-la, tapá-la com um pano, movê-la de um lado para o outro. Requeremos que observadores diferentes sejam capazes de percepcionar a mesma mesa. Tudo isto sugere que a mesa é algo além e acima dos dados dos sentidos que nos aparecem. Mas, se não existisse qualquer mesa no mundo teríamos de formular uma hipótese complicada acerca de existirem tantas mesas-aparentes diferentes quantos os observadores existentes e explicar como, apesar disso, falamos todos como se estivéssemos a percepcionar o mesmo objecto.
Mas repara que do ponto de vista céptico, como Russell indica, nem devemos sequer pensar que existem outros observadores. Afinal de contas, se não podemos refutar o cepticismo acerca dos objectos, como é que refutamos o cepticismo acerca da existência de outras mentes?
Russell ultrapassa esta dificuldade aceitando uma versão daquilo a que se chama ‘o argumento da melhor explicação’. É certamente muito mais simples e mais poderoso, argumenta ele, adoptar a hipótese de que, primeiro, há realmente objectos físicos que existem independentemente da nossa experiência sensorial e, segundo, que eles causam as nossas percepções e, portanto, lhes ‘correspondem’ de uma forma fiável. Seguindo Hume, Russell vê a crença nesta hipótese como ‘instintiva’.
A este, argumenta ele, podemos juntar outro género de conhecimento, a saber, o conhecimento a priori das verdades da lógica e das matemáticas puras (e até talvez das proposições fundamentais da ética). Tal conhecimento é totalmente independente da experiência e depende completamente da auto-evidência das verdades conhecidas, como ‘1 + 1 = 2’ e ‘A = A’. Quando o conhecimento perceptivo e o conhecimento a priori são unidos permitem-nos adquirir conhecimento geral do mundo para além da nossa experiência imediata, porque o primeiro género de conhecimento dá-nos os dados empíricos e o segundo género permite-nos extrair deles inferências.
Cada um destes dois géneros de conhecimento pode ser ainda dividido em subgéneros, descritos por Russell respectivamente como conhecimento imediato e conhecimento derivado. Ele chama ‘contacto’ ao conhecimento imediato de coisas. Os objectos do contacto são eles próprios de duas espécies: particulares, isto é, dados dos sentidos individuais e ― talvez ― nós próprios; e universais. Os universais são de vários tipos. Eles incluem qualidades sensíveis como vermelhidão e lisura, relações espaciais e temporais como ‘à direita de’ e ‘antes’ e certas abstracções lógicas.
Ao conhecimento derivado de coisas, Russell chama ‘conhecimento por descrição’, que é conhecimento geral de factos tornado possível pela combinação de e a inferência de aquilo com que temos contacto. O nosso conhecimento de que o Everest é a montanha mais alta do mundo é um exemplo de conhecimento descritivo.
Ao conhecimento imediato de verdades Russell chama ‘conhecimento intuitivo’ e descreve as verdades que são assim conhecidas como auto-evidentes. Estas são proposições simplesmente ‘luminosamente evidentes e não podem ser deduzidas de nada mais evidente’. Por exemplo, simplesmente vemos que ‘1 + 1 = 2’ é verdade. Entre os itens do conhecimento intuitivo encontram-se os relatos da experiência imediata; se afirmo simplesmente de que dados dos sentidos estou agora consciente, não posso (à excepção de lapsos verbais triviais) estar enganado.
O conhecimento derivado de verdades consiste em tudo o que possa ser inferido de verdades auto-evidentes por intermédio de princípios de dedução auto-evidentes.
Apesar da aparência de rigor que a nossa posse de conhecimento a priori introduz, diz Russell, temos de aceitar que o nosso conhecimento quotidiano geral é apenas tão bom quanto o seu fundamento na justificação pela ‘melhor explicação’ e nos instintos que o tornam plausível. O conhecimento comum, portanto, equivale na melhor das hipóteses a ‘opinião mais ou menos provável’. Mas quando verificamos que as nossas opiniões prováveis formam um sistema que é coerente e se suporta mutuamente ― quanto mais coerente e estável for o sistema, maior a probabilidade das opiniões que o formam ― vemos por que razão podemos confiar nelas.
Uma característica importante da teoria de Russell diz respeito ao espaço e, em particular, à distinção entre o espaço público que tudo contém, assumido pela ciência, e os espaços privados em que os dados dos sentidos dos observadores individuais existem. O espaço privado é construído a partir de várias experiências visuais, tácteis e outras que um observador coordena numa matriz com ele mesmo no centro. Mas porque não temos contacto com o espaço público da ciência, a sua existência e natureza é inteiramente uma questão de inferência.
Esta é a primeira versão de uma teoria do conhecimento e da percepção de Russell, tal como é exposta nos PF. No primeiro encontro ficamos com uma refrescante sensação de senso comum, mas está longe de não ser problemática. Por exemplo, Russell fala de conhecimento ‘primitivo’ e descreve-o como intuitivo, mas não diz em que consiste esse conhecimento, para além de dizer que não exige o suporte de nada mais auto-evidente do que ele próprio. Mas esta definição é pouco adequada e ainda é mais obscurecida quando ele acrescenta que há dois géneros de auto-evidência, dos quais apenas um é básico. Faz esta distinção sentido? Em todo o caso o que significa ‘auto-evidência’? Ele também não tem em conta a possibilidade de duas proposições se poderem contradizer mutuamente apesar de parecerem auto-evidentes quando consideradas separadamente. Se isto acontecesse, qual escolher e com base em que princípios de auto-evidência adicionais?
Outra crítica dirigida ao ponto de vista de Russell é a de que faz uma assunção importante mas questionável acerca da natureza básica da experiência sensorial. É que os dados dos sentidos, enquanto sensoriais mínimos como cores particulares, cheiros ou sons, são simplesmente dados na experiência e são os seus elementos mais primitivos. Mas a experiência sensorial não é de todo desta forma ‘diminuta’ e imediata. É antes uma experiência rica e complexa de casas, árvores, pessoas, gatos e nuvens ― é fenomenologicamente ‘cheia’ e chega-se apenas aos dados dos sentidos por um complicado processo de esvaziamento da experiência perceptiva comum de tudo o que normalmente significa para nós. Assim, não vemos um rectângulo e inferimos que é uma mesa; vemos uma mesa e, quando nos concentramos na sua forma, vemos que é um rectângulo.
Esta crítica é, até onde alcança, de certeza correcta, mas há formas de a ter em conta que nos permitem ainda assim descrever os aspectos sensoriais da experiência independentemente da carga usual de crenças e teorias que carrega. Uma vez que o objectivo é tentar justificar a posse daquelas crenças, mostrando que a experiência perceptiva nos dá o direito a tê-las, precisamos obviamente de uma descrição da experiência perceptiva considerada puramente como tal, de modo a podermos avaliar a sua adequação para a tarefa. O objectivo de Russell ao falar de dados dos sentidos é fazer precisamente isso. Além disso, Russell reconheceu que os dados dos sentidos não são o que é imediatamente dado na percepção; em escritos da década após os PF ele refere repetidamente que as especificações dos dados dos sentidos são obtidas em último lugar na análise e não primeiro na experiência.
Outra crítica é que Russell assume que a experiência imediata pode ser expressa em proposições que, apesar de descreverem apenas o que é subjectivamente ‘dado’, podem ser usadas como base para o conhecimento do mundo. Mas como pode o que parece aplicar-se apenas à experiência privada e não conter qualquer referência ao que está para além da experiência ser a base para a teoria do conhecimento? Não serve de nada dizer que Russell também admite conhecimento a priori dos princípios lógicos que permitem fazer inferências a partir destas proposições, porque não haveria qualquer motivação para as fazer a menos que, além dele, o sujeito possua algumas crenças empíricas gerais para servir como premissas maiores em tais inferências e algumas hipóteses empíricas que as inferências efectivamente testam ou suportam. Mas quer umas quer outras não estão disponíveis a um experimentador dotado apenas, como Russell o apresenta, com dados dos sentidos e verdades auto-evidentes da lógica.
Este problema era importante para o próprio Russell e muito mais tarde (em Human Knowledge) tratou-o aceitando uma versão de algo que anteriormente tinha rejeitado na filosofia de Kant, a saber, que têm de existir coisas (diferentes das verdades da lógica) que conhecemos a priori para que o conhecimento seja de todo possível. Este ponto altamente importante é discutido no lugar apropriado mais a baixo.
Outro problema avançado pelos críticos é que as considerações em que Russell se baseia para mostrar que há uma distinção aparência-realidade, como ele as enuncia, não persuadem. O facto de que um objecto parecer de uma cor ou forma para um observador e de outra cor ou forma para outro observador, ou de diferentes cores ou formas para o mesmo observador sob diferentes condições ― por exemplo, consoante o veja à luz do dia ou no escuro, ou de um ponto de vista ou outro ― diz-nos que a questão de como os objectos aparecem à percepção é uma questão complicada, mas por si só não nos diz que estamos a perceber algo diferente do objecto em questão.
Esta crítica é válida, mas acontece que, como mostram trabalhos mais recentes na filosofia da percepção, há outras formas perfeitamente adequadas de traçar uma distinção aparência-realidade; assim, os argumentos de Russell podem aqui ser vistos ― como ele próprio os via ― como heurísticos, isto é, como ilustrando apenas o ponto a fim de começar a discussão.
Mas esta crítica sugere uma outra mais importante. É que Russell, como todos os seus predecessores desde Descartes e como alguns dos seus sucessores como H. H. Price e A. J. Ayer, aceitava uma suposição extremamente importante de Descartes. Esta suposição é que o ponto de partida correcto para uma investigação sobre o conhecimento é a experiência individual. O indivíduo começa com os dados privados da consciência e descobre razões entre eles para apoiar as suas inferências para ― ou, de forma mais geral, crenças sobre ― um mundo fora da sua cabeça. Uma das maiores mudanças na filosofia do século XX foi a rejeição desta suposição cartesiana. Entre as sérias dificuldades desta suposição encontra-se que se a aceitarmos o cepticismo torna-se impossível de ignorar ou de refutar. Outra é que com uma base tão pequena não estamos simplesmente autorizados a pensar no solipsístico pretenso conhecedor, sozinho dentro da sua cabeça, como sendo capaz de nomear e pensar sobre as suas sensações e experiências e ainda menos como sendo capaz de raciocinar a partir delas para um mundo exterior. Ambos os pensamentos nos empurram firmemente para o pensamento de que o lugar adequado para começar a epistemologia é, de certo modo, no domínio público.